
"O ritual era sempre o mesmo: meu pai chegava um pouco antes do telejornal, tomava banho e minha mãe apressava-se em esquentar a comida. Fazia a mesa com habilidade e rapidez, e, por último, escolhia no refrigerador a cerveja mais gelada. Botava a Caracu na mesa, e, como quem estivesse cronometrando tudo aquilo, meu pai chegava à sala no exato instante em que minha mãe encerrava seu serviço, puxando a cadeira para que ele se sentasse.
Foi assim que fui me familiarizando com aquela bebida escura. Levei anos, sim, para descobrir que era um touro e, não, uma vaquinha, o animal que estampava aquele rótulo vermelho. Um dia, meu pai me interrompeu no exato momento em que eu, totalmente à toa e sem interesse no telejornal feito para adultos, tentava descascar com as unhas roídas a simpática vaquinha.
"Quer provar?"
Se não fazia mal ao meu pai, não haveria de ser ruim para mim. Experimentei com medo e, para não decepcioná-lo, disse que tinha adorado aquele gosto amargo. No dia seguinte, na falta da cerveja da vaquinha na geladeira, minha mãe levou para a mesa uma garrafa maior, com um líqüido quase dourado. Encantei-me pelos pingüins que ilustravam aquele rótulo e quis deixar meu pai orgulhoso:
"Posso provar?"
De gole em gole, fui crescendo, assim como crescia a quantidade de cerveja que meu pai, cuidadoso, permitia que eu experimentasse. Custei a convencê-lo de que já era hora de ter meu próprio copo, em vez de ficar vivendo de esmolas. Quando, já moça, consegui dobrá-lo, deixei que a espuma grudasse nos meus lábios só para depois varrê-la para dentro da boca com a língua. Bebi tudo. E guardei comigo um segredo que somente hoje, sei lá quantos anos depois, revelo ao mundo: fiquei tonta e deitei no sofá.
Meu pai se aposentou, mas ainda bebe sua cerveja. De vez em quando, comigo, num almoço de domingo com a família, hoje bem maior.
Mas sou também de beber sozinha. Caipirinha, cerveja e chope são a minha companhia, assim como os garçons com quem fiz amizade por esses bares da vida. Adoram falar de futebol. E, sendo assim, o que há de melhor no mundo do que resenha de bola com aquele santo homem que mata a sede da gente? Resposta: o melhor é fazer isso tudo com alguma pressão no chope. Amém."
Marluci Martins é repórter de Esportes do Jornal O Dia desde 1988. Faz parte também do time de comentaristas do programa Redação Sportv. Nas horas vagas, dedica o tempo que lhe resta ao sagrado chope gelado e seu blog, Futebol&Afins (pra conferir, é só clicar no link).